Casos de COVID-19 mesmo depois de tantas doses de vacina? Como assim?

Em pleno 2024, e estamos aqui falando sobre elas novamente, afinal, você já deve ter se deparado com desinformações sobre a real eficácia das vacinas contra a COVID-19. Argumentos do tipo: “a prova de que as vacinas foram inúteis e que elas só serviram como estratégia de opressão de governos autoritários e para enriquecer a indústria farmacêutica é que os casos de COVID-19 não param, mesmo depois de várias doses”, ou daí pra pior.
Assim resta justificada a minha motivação em abordar essa temática em meu texto inaugural desta couna. Afinal as dores e a sensação quase apocalíptica da pandemia ainda se faz presente em nossa memória recente (ainda que muitos já tenham esquecido). Portanto, esperançoso de que em uma próxima pandemia (sim, é só questão de tempo, infelizmente) nós, enquanto sociedade, tenhamos um maior senso de coletividade, racionalidade e “noção das coisas” peço licença ao leitor para trazer algumas considerações científicas a fim de desmistificar, ou pelo menos tentar minimizar o dano que tais desinformações podem trazer à saúde coletiva.

O primeiro ponto é que de fato novos casos de COVID-19 continuam surgindo (e não vão parar de surgir!), afinal o vírus não foi extinto da face da terra, e onde houver aglomerações, ele vai continuar colonizando novas e belas narinas (as feias também), por meio de gotículas dispersas no ar e que passeiam ao nosso redor. Em cada célula que ele se aloja, o caminho natural é que ele se replique (gere novas cópias virais). Agora imagine cada vírus em cada pessoa infectada se replicando. Bem, daí dá para imaginar que estamos falando de um número inestimado (trilhões, zilhões?) de replicações não é mesmo?!
O que talvez você não saiba é que quanto mais replicações acontecem, matematicamente aumentam as chances de em uma (ou mais) delas, ocorrer algum erro (mutação) que pode gerar cópias com alguma característica potencializada ou mesmo nova (maior infectividade, maior letalidade, maior adaptação ou capacidade de se camuflar perante anticorpos naturais ou adiquiridos por vacinas). E é assim que surgem as linhagens e variantes para a sorte (sobrevivência) dos vírus e para o nosso azar!
Não é atoa que muito se utiliza a analogia de guerra em relação ao combate aos vírus, assim como usamos essa mesma analogia para se referir a corrida contra a resistência bacteriana à antibióticos (quem sabe pode ser tema de outro post!)

Nesse sentido, as vacinas são um componente imprescindível em nosso arsenal de guerra, como uma arma de efeito em massa, mas assim como as armas bélicas precisam ser periodicamente atualizadas para que não seja superada pelas armas do inimigo. De fato é uma corrida, onde nunca se afirmou que essa ou aquela vacina seja perfeita, mas sim, que elas são necessárias para neutralizar e reduzir o poder do nosso inimigo invisível. E diminuem.
Anualmente a vacina contra a gripe (influenza), por exemplo, é atualizada com base na variante viral que se mostrou mais predominante no ano anterior e essa informação é obtida com base na análise dos genomas virais oriundos de amostras captadas em diferentes partes do mundo (vigilância genômica) e analisadas por diferentes laboratórios de referência que conseguem realizar sequenciamento genético. A ideía é fazer o mesmo para o SARS-CoV-2, e isso é uma medida de grande escala. Nada impede que eu ou você se infecte com uma variante menos predominante globalmente, e que por esse motivo ainda não se tenha uma vacina atualizada especificamente.
Ou seja, em larga escala, se faz o que é viável.
O varíola foi erradicada graças a uma estratégia massiva de vacinação, aliada ao fato do vírus causador da doença sofrer muito menos mutações (pois, é a biologia do vírus também explica muita coisa!)
Infelizmente sabe-se que os vírus de RNA, como SARS-CoV-2, HIV e Influenza, biologicamente são muito mais propensos a mutações. Por isso afirmei lá no início do texto, que a nossa e as próximas gerações enfrentarão certamente outras pandemias, é quase que inevitável. O que se pode evitar ou minimizar é o impacto delas, e uma das armas para isso é o combate a desinformação, até porque vivenciamos na pele o efeito nocivo que ela pode trazer.

E contra a desinformação dos que são anti-vacina, temos sim, quer queiram ou não, a “prova dos 9”. Basta olhar os dados!
É inegável que o número de óbitos e consequentemente a taxa de mortalidade não só caiu, mas despencou desde o início da imunização em massa. E não apenas as mortes, mas o número de internações e a gravidade da doença entre aqueles que a contraem hoje, está em um patamar muito, mas muito inferior do cenário anterior as vacinas. E mesmos os picos pontuais no número de casos, certamente não se assemelham nenhum pouco aos números absurdos que presenciamos lá pelos anos de 2020 e 2021.

Para ilustrar:
Na última semana de 2023, foram registrados no Brasil 33,5 mil novos casos e exatos 147 óbitos, sendo dezembro considerado o pior mês no ano, enquanto que em um só dia (08/04/2021) registramos quase 100 mil novos casos e 4.249 óbitos no momento em que a cobertura de vacinação ainda era bem tímida no país.

Portanto, à você leitor que chegou até o final deste texto, peço até desculpas por ter feito toda uma explanação para dizer o óbvio, mas em pleno 2024, ano em que talvez nossos antepassados achassem que estaríamos passeando de carros voadores, vemos a necessidade de falar mesmo o óbvio. E se algum negacionista que leu até aqui, pelo menos parar para refletir um pouco, já ganhei meu dia.

Até a próxima.

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Rayner Anderson

Biomédico. Mestre em Biologia Celular e Molecular. Professor de cursos de graduação e pós-graduação na área da saúde há mais de 8 anos. Pesquisador nas áreas de genética humana e saúde pública. Foi consultor da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) para o enfrentamento da COVID-19 entre 2020 e 2021. Atualmente é gerente de Educação e Pesquisa do Laboratório Central de Saúde Pública do Estado da Paraíba. Cristão, esposo apaixonado, pai de Ana Sofia, gosta de séries, história e sushi.